Pessoas maiores de idade podem, de forma livre, consciente e informada, recusar transfusão de sangue por razões religiosas, e essa negativa só pode ser manifestada pelo próprio paciente, não se estendendo a terceiros.
Como consequência, os religiosos têm direito a tratamentos alternativos disponíveis no (SUS), que devem ser custeados em outro domicílio caso não existam no local de residência do paciente.
Os votos dos relatores, ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, prevaleceram. Barroso foi relator do caso envolvendo a adequação ao tratamento; Gilmar relatou o processo sobre a possibilidade de recusa à transfusão de sangue.
No caso de crianças e adolescentes, os pais podem optar por procedimentos alternativos, desde que isso não contrarie a avaliação médica. A discussão sobre o ponto foi levantada pelo ministro Cristiano Zanin e contemplada pelos relatores.
Por fim, médicos podem, por objeção de consciência, se recusar a fornecer tratamentos alternativos. O ponto consta no voto de Flávio Dino e também foi incluído pelos relatores na decisão.
Foi fixada a seguinte tese:
1. Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, têm o direito de recusar procedimento médico que envolva transfusão de sangue, com base na autonomia individual e na liberdade religiosa.
2. Como consequência, em respeito ao direito à vida e à saúde, fazem jus aos procedimentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde – SUS, podendo, se necessário, recorrer a tratamento fora de seu domicílio.
Incorporação progressiva
A decisão determina que o SUS incorpore progressivamente tratamentos alternativos, além de assegurar procedimentos já existentes. Caso o tratamento não seja oferecido em determinada localidade, hospitais credenciados devem oferecer o tratamento, mesmo que em outro domicílio.
Em um dos processos julgados, o paciente morava no Amazonas, mas se tratou em São Paulo. A despeito de sua especificidade, a decisão deve ter impacto substancial nas políticas de saúde pública, conforme mostrou reportagem da revista eletrônica Consultor Jurídico.
A Corte entendeu que os religiosos podem assinar diretivas de vontade previamente manifestadas, que valem em caso de o paciente não poder momentaneamente manifestar sua vontade, como em um episódio de inconsciência.
Ao todo, ficou definido:
- Testemunhas de Jeová podem recusar transfusões, mas a manifestação de vontade deve ser proferida por um paciente maior de idade, capaz, e em condições de discernimento;
- a manifestação tem que ser livre, voluntária e autônoma, sem nenhum tipo de coação;
- deve ser inequívoca. Ou seja, feita de forma expressa, prévia ao ato médico;
- em caso de impossibilidade de manifestação, em episódios, por exemplo, em que o paciente está inconsciente, vale diretiva antecipada de vontade, caso ela exista;
- a manifestação tem que ser esclarecida. Ou seja, precedida de informação médica completa e compreensível sobre o diagnóstico, tratamento, riscos, benefícios e alternativas;
- médicos não são obrigados a aplicar tratamento alternativo, podendo recusar métodos que não sejam a transfusão, e não podem ser responsabilizados;
- a manifestação de vontade vale para cada pessoa, não sendo possível decidir por terceiros;
- No caso de crianças e adolescentes, os pais podem optar por outro tratamento considerado igualmente eficaz, desde que não contrarie a avaliação médica.
Os votos dos relatores
Segundo Barroso, relator de um dos casos, a discussão trata essencialmente de autonomia, o que envolve a possibilidade de que as pessoas façam livremente suas escolhas existenciais.
“A dignidade humana exige o respeito à autonomia individual na tomada de decisões sobre a saúde e o corpo. Já a liberdade religiosa impõe ao Estado a tarefa de propiciar um ambiente institucional, jurídico e material adequado para que os indivíduos possam viver de acordo com os ritos, cultos e dogmas da sua fé, sem coerção ou discriminação”, disse o ministro.
Para o ministro, pacientes que professam a religião das Testemunhas de Jeová têm direito a tratamentos alternativos já disponíveis no SUS, ainda quando indisponíveis em seu domicílio quando os métodos utilizados em seu local de residência não forem adequados.
Ainda de acordo com Barroso, tratamentos alternativos são recomendados pela Organização Mundial de Saúde. Alguns já são oferecidos pelo SUS, apesar de não estarem disponíveis de forma ampla em todo o território nacional.
“Neste contexto, o poder público deve adotar medidas para tornar esses procedimentos disponíveis e capilarizados”, concluiu o relator.
Já Gilmar Mendes defendeu que o SUS deve incorporar outros tipos de tratamento, considerando que há recomendações no sentido de adotar métodos alternativos e que esse tipo de procedimento apresenta maior compatibilidade com a liberdade religiosa. Também destacou que a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a adoção de outros métodos, que são considerados seguros.
“A implementação paulatina de procedimentos para assegurar a universalidade do serviço consubstancia fim a ser perseguido pelo Estado. Alguns desses tratamentos já são incorporados e realizados no âmbito do SUS, de modo que a liberdade religiosa impõe que se assegure às testemunhas de Jeová o acesso a eles, ainda que por meio de programa de tratamento fora de domicílio”, disse.
“O direito à vida digna parte do pressuposto de que um adulto capaz e consciente pode dirigir suas ações e condutas de acordo com suas convicções, a significar que mesmo naquelas situações nas quais atuar com a fé professada põe a própria vida circunstancialmente em risco,, subsiste o direito de escolha a determinado tratamento de saúde”, afirmou.
“Em razão da liberdade religiosa e da autodeterminação, mostra-se legítima a recusa pelas Testemunhas de Jeová de tratamento que envolva transfusão de sangue, não sendo possível ao médico impor procedimento recusado por paciente no gozo de sua capacidade civil plena, de forma livre, consciente e informada”, concluiu.
Conforme mostrou a ConJur, o julgamento no Supremo deve ter reflexos em situações laterais, mas que têm relação direta com a garantia dos tratamentos alternativos pelo SUS — e também podem gerar impactos orçamentários significativos, uma vez que há a necessidade de adquirir, transportar e armazenar novos equipamentos e tecnologias, além de fazer o treinamento dos profissionais de saúde.
Hoje, há pouca discussão sobre a adoção de tratamentos alternativos à transfusão no SUS.
O sistema de saúde brasileiro já tem conhecimento sobre o tema, mas sua implementação tem ocorrido, em geral, por via judicial.
Nesses casos, a judicialização (e a resistência por parte dos litigantes) é tão intensa que as instituições de saúde, por vezes, recusam-se até a receber o equipamento que garante o tratamento sem transfusão.
Em julho de 2023, por exemplo, a Vara da Fazenda Pública, Acidentes do Trabalho e Registros Públicos de Lages (SC) teve de obrigar um hospital a autorizar a entrada de uma máquina de recuperação intraoperatória de sangue para uma cirurgia em uma testemunha de Jeová.
RE 1.212.272
RE 979.742
Matéria original: Conjur.
Autor: Tiago Angelo
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Autor: Diego Guerreiro Lopes OAB/SP:416.326.